Voz da Sociedade
Ayúdame a mirar
Natacha H. O. Becker*

Há alguns dias, durante uma sessão, uma paciente conta uma descoberta que havia feito sobre si mesma e por conta disso, deu-se conta, de que agora ela tinha muitas possibilidades/caminhos que poderia escolher. A descoberta causou ao mesmo tempo, um misto de felicidade (já que ela podia muito mais do que imaginava) e angústia (já que se abriam tantas alternativas que aquilo, de início, entrava como um excesso). Então, ela disse: “Ayúdame a mirar!” “São tantas coisas que estou sentindo, que eu não sei nomear. Não conheço isso, essa sensação de apreço por mim mesma. Como se fosse uma inauguração de uma sensação de satisfação. Mas, é tanta coisa ao mesmo tempo, que eu preciso que tu me ajudes a olhar, entender tudo isso que eu estou sentindo.”
A paciente em questão se referia ao conto do escritor uruguaio Eduardo Galeano: “La función del arte”. O conto fala de um menino que não conhecia o mar e foi levado pelo pai para conhecê-lo. Ambos precisaram caminhar muito e quando alcançaram o topo das dunas de areia e o menino viu o mar, ficou tão extasiado que ‘ficou mudo’ com tanta beleza. Quando por fim conseguiu falar, pediu a seu pai que o ajudasse a olhar (ayúdame a mirar). Por mais que estivesse diante de tamanha beleza e êxtase, o menino precisava da ajuda do pai para entender toda aquela imensidão que estava diante dele.
Não foi à toa que a mesma precisou da metáfora literária para poder elucidar a grandiosidade do que ela estava sentindo. Ao mesmo tempo em que ainda não conseguia colocar em palavras aquilo que sentia, precisava que alguém a ajudasse a entender e a nomear todo aquele ‘excesso’ de possibilidades.
O percorrido que o menino fez junto com seu pai, me fez lembrar o percorrido que fizemos juntas, ela e eu, mas também, o trajeto/caminho que todo analista faz com seu paciente ao longo de uma análise. É uma travessia feita em duplas onde todo analista caminha (ou pelo menos deveria) no ritmo do paciente, ou seja, acompanha esse que ainda não conhece o que pode encontrar no final do caminho, mas que aposta nele. E durante o percurso, vai ajudando a nomear e a apropriar-se de fragmentos de sua história libidinal passada e reconstruir seu sentido para poder colocar a serviço de seu projeto de vida atual, essa apropriação de sua história só é possível mediante a relação que se estabelece entre analista e paciente, esse não é um vínculo qualquer, é uma relação analítica. Essa relação analítica é o resultado do encontro que se estabelece entre a dupla e com certeza para Francischelli (2007, p.32) “... é a relação mais íntima que uma pessoa pode ter consigo mesma através de outra pessoa, o analista”.
Dessa forma, podemos pensar que o analista teria um grau de intimidade tão grande com o paciente, porque seria ele quem faria esse elo de ligação, entre a história inconsciente recalcada do paciente e o sintoma que se manifesta na atualidade que fez com que esse paciente buscasse uma análise. O papel do analista consistiria então, em reconstruir a história desse paciente através de construções e interpretações e assim, tornar-se agente nesse processo. O que possibilita que o analista tenha acesso a esse material inconsciente e torne-o consciente e dessa forma ele possa ser construído e interpretado para transformar-se em memória, é relação transferencial. É a transferência que fará essa ligação entre lembranças e afetos entre a dupla, por consequência, é a análise da transferência que revelará as potencialidades dos pressupostos da psicanálise.
Ao interpretar, surge o analista, segundo Aulagnier (1990) como um intérprete daquilo que escuta do paciente, entretanto, todo intérprete coloca um pouco de sí naquilo que lhe perpassa, que tramita por dentro dele e que devolve ao paciente através de uma interpretação e/ou construção. Essa tramitação que ocorre no analista até que ele comunique uma interpretação/construção, não significa falta de neutralidade ou de abstinência, mas sim, que o analista é ativo no processo de análise de seus pacientes. Diferente de outras ciências, em que o cientista somente observa um fenômeno e o registra, em um processo analítico existe uma dupla ativa, em que um inconsciente deve ser entendido através de outro inconsciente.
Esse pedido de “ayuda a mirar” é a aposta nessa possibilidade de enxergar através da análise novos caminhos que podem ser percorridos e ressignificar ou construir novos horizontes.
Referências:
Aulagnier, P. (1990). Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta.
Francischelli, L. (2007). Amanhã, Psicanálise! O trabalho de colocar o tratamento no paciente. São Paulo: Casa do Psicólogo.
* Psicóloga, psicanalista, membro associado da Sig e membro do conselho da SPRGS