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Precisamos despatologizar a infância

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Publicado por em Voz da Sociedade · 7 Julho 2022
Voz da Sociedade
Precisamos despatologizar a infância
Dayane Duarte*
O desenvolvimento psíquico de um sujeito inicia na infância, onde sua estrutura ainda não está definida e é nesse período inicial do ciclo vital que vão ocorrer as inscrições constituintes, que dependem não somente de questões biológicas, mas, principalmente, de figuras que exerçam funções maternas e paternas, auxiliando na inscrição simbólica de certas operações. Nessa primeira fase, os recursos que estão sendo desenvolvidos podem transitar de formas diferentes e individuais para cada criança. Quando uma criança manifesta algum sintoma, muitas vezes, este pode ser de caráter transitório ou apenas uma peculiaridade existente no processo de constituição do psiquismo, não significando ser uma característica a ser corrigida ou patologizada. Para a psicanálise, o sintoma apresenta-se como uma resposta a um conflito psíquico e não necessariamente direcionando a criança para uma psicopatologia, rotulando e a definindo como se fosse sua identidade. Esse desenvolvimento da estrutura psíquica, que inicia na infância, pode pendurar até a adolescência, o que exclui a precisão de algum diagnóstico estabelecido tão precocemente.

A psicanálise trata o sujeito na sua singularidade, no entanto, essa construção singular também é atravessada pelos rastros da cultura e de uma vasta organização social, da qual o sujeito é fruto. O discurso social ressoa em cada criança de um modo distinto e provoca sintomas que refletem tanto seus conflitos individuais quanto os dramas coletivos. Quando há um discurso social que sustenta o sofrimento culturalmente, esse sofrimento ganha reconhecimento, porém, não havendo espaço para angústia e desejo, o mal-estar segue sem nomeação. Muitas crianças, denominadas portadoras de algum transtorno, que chegam para tratamento psicológico, são efeito desse discurso social pré-determinado, que articulado com os fantasmas familiares e o sofrimento singular, aparecem como demanda de tratamento, porém, a criança que fala, anteriormente é falada pelos cuidadores, que estão atravessados por um determinado contexto e pelos seus próprios conflitos.

A partir de diagnósticos na infância surgem alguns efeitos significativos no processo constitutivo, afetando inclusive esses cuidadores, que por vezes, ao invés de conseguirem olhar para a criança como um todo, se fixam na psicopatologia e excluem ela de outras possibilidades, limitando suas ações e até mesmo, em alguns casos, as excluindo de um convívio social, transformando aquilo que poderia ser uma condição momentânea em algo difícil a ser revertido no futuro.

Vivemos em tempos em que uma criança ativa, que usa da sua criatividade e espontaneidade, sem seguir padrões e regras estabelecidas pelas instituições, que não atende às normas sociais ou que apresenta algum comportamento que desvia do que é imposto, é vista como doente, como portadora de um transtorno, quando, na verdade, negar a passividade e brigar por um espaço de criação seria extremamente importante para seu desenvolvimento psíquico e intelectual.

A intervenção precoce é de extrema importância e contribui para o alívio de um sofrimento acusado desde os primeiros anos de vida, contribuindo e, por muitas vezes, impedindo a constituição de estruturas psíquicas que inclinem para o nível patológico, porém, não é viável cristalizar e transformar em um diagnóstico pautado em critérios pré-estabelecidos, desconsiderando a plasticidade e permeabilidade da criança, que lhe é intrínseca. Para além de qualquer diagnóstico, uma intervenção precoce deve considerar os aspectos próprios do sujeito na infância.

Na contemporaneidade o que tem ocorrido é uma tentativa de silenciar o mal-estar infantil e o que esse mal-estar tem a dizer, calando o sintoma e, muitas vezes, medicalizando a dor. Pois é através da escuta desse mal-estar, acolhendo o que é do sofrimento, que surgem as produções singulares. Os sintomas e representações denunciam algo que vai além do que é visto imediato e aparentemente mais emergente.  

É necessário refletirmos sobre como será o futuro dessas crianças privadas de liberdade e criatividade, sendo rotuladas desde cedo, sofrendo preconceitos e generalizações. O diagnóstico infantil, de certa forma, acalma os cuidadores, educadores e a sociedade como um todo, quando podem chamar a criança pelo seu diagnóstico e justificar o porquê de seus comportamentos, no entanto, falta olhar para o contexto como um todo e identificar onde está a falha na constituição desse sujeito. Existem marcas que depois de instauradas no psiquismo de uma criança, dificilmente serão apagas, talvez amenizadas. Precisamos despatologizar e infância!

* Psicóloga.


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